terça-feira, 5 de abril de 2016

"Na panela tem...#3"

Fala, minha gente. Tudo bem com vocês?

Essa semana eu vim cumprir a minha promessa, passando pelos vários imbróglios gourmetizadores por aí. Rs.

A análise do "Gastronomia no Brasil e no Mundo", de Dolores Freixa e Guta Chaves, compõe o arsenal do "Na panela tem... #3". A edição e análise é a mais recente (a 3a.), publicada em 2015.

As autoras, Dolores e Guta são estudiosas da gastronomia de forma geral. A primeira, historiadora e professora do curso de turismo e gastronomia, e a segunda jornalista de formação, trabalhou na revista Gula, a referência do início dos anos 2000. Autoras entusiasmadas com a gastronomia e condições de viabilidade para se produzir um livro, vamos lá conferir a obra.

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(a imagem é ainda da primeira edição, de 2009. O atual vem escrito "3a. edição revisada e atualizada" do canto superior e esquerda)

Bom, preciso começar dizendo que o livro é lindo! Atual quanto às suas informações, provocativo quanto às reflexões, e uma importante base para se pensar a gastronomia no Brasil e no mundo!

Os "Petiscos da História", recurso fantástico utilizado pelas autoras, busca "colar" o conteúdo ampreendido àquilo que é parte do cotidiano. Assim, conseguimos transitar melhor entre as questões mais abstratas e, de certa forma, encontrar conforto quando deixamos aquilo mais palpável.

O Livro se divide em vários capítulos, logo, farei brevíssimos comentários sobre cada um deles!

Em "Uma cultura chamada gastronomia" traz à tona questões importantes! Além de convocar reflexões sobre o que é gastronomia, fala-se sobre cozinha e culinária, sua ligação à alimentação, a emergência dos restaurantes (e a noção de restauração), amarrando tudo à história da gastronomia.

No capítulo 2, "pré-história e história antiga", vai nos colocar quais horam as contribuições dos humanos doa primórdios, buscando evocar as formações sociais e sua relação à alimentação. Civilizações e "berços de saber gastronômico" são discussões que irão aparecer por aqui.

Em "europa medieval, árabes e bizantinos", leremos um pouco da transformação/complexificação social emergente neste momento, o que o cristianismo protagonizou junto a toda a formação social eupeia. Fala-se do clero, do tímido reaparecimento das cidades, o Le Vindier (livro de cozinha medieval), do império bizantino e das Árabes - de suas contribuições, na verdade. Tais contribuições, inclusive, ultrapassam ingredientes e chegam às formas como se servem os alimentos.

No trecho "renascença, a contribuição italiana" a autora corrobora com o que fazem a maioria dos autores: colocam sobre as costas de Catarina de Médicis a questão da emergência da corte francesa. Para quebrarmos um pouco essa perspectiva, sugiro que leiam esse debate aqui. Além disso, a reemergencia de uma cozinha regional e os laços entre a França Moderna e a Itália Renascentista são um marco do período.

No capítulo "expansão marítima e a américa", mais que a fala sobre especiarias, vale o processo de compreensão de ganhar o mundo. A troca de ingredientes e hábitos alimentares ocorrida entre regiões é o escopo da discussão. Um trabalho fantástico.

O capítulo 6 traz "a influência da gastronomia francesa", nos mostrando que, após o contato com a Itália, França se tornou o centro de referência dos bons modos à mesa, às festas, aos bailes.Os chefes dos reis passam a figurar como personagens importantes. As bebidas do novo mundo já fazem parte do cotidianos da aristocracia (chá, café e chocolate).

Em "a idade de ouro da gastronomia francesa" emergem os debates sobre os primeiros críticos gastronômicos, os chefes de ouro, a emergência da indústria hoteleira de luxo, além de refletir sobre a ciência à favor da alimentação e quais são eras expectativas para o século XX.

No capítulo "idade contemporânea", muitas da respostas são encontradas, nem sempre num sistema sustentável às demandas do século XX. Vale ressaltar a integração do mundo dos vinhos com o resto do mundo, além de um turismo cada vez mais voltado à contemplação do regional e que busca entender os movimentos migratórios intensos dos séculos XIX-XX.

No trecho "Brasil", o livro o divide em "heranças, colonial, império, século xx, cozinha típica regional", finalizando o processo em Globalização. Assim, vale ressaltarmos a disposição da autora de pôr o Brasil num papel tão importante quanto o da cozinha do mundo europeu.

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O livro é muito, muito maravilhoso. Erroneamente, ao avaliá-lo há 3 semana, dei 3 frigideirinhas no meu instagram. Errei! Este livro merece 4 frigideirinhas!

As 4 frigideirinhas não sã em vão: apesar do trabalho magnífico das autoras, elas assumem - num sem fim de vezes ao longo o texto - a gastronomia como sendo a "alta cozinha" (seja lá o que isso signifique, de fato". No capítulo que trata sobre cozinha na idade média, num dado momento elas evocam a "cozinha rudimentar do camponês" (p. 60), falando da não nobreza dos ingredientes que cresciam rentes ao chão, como legumes e leguminosas. Além disso, escritos de cozinha registram o que comem os nobres, não os camponeses.

Isso é um pouco inconsistente, a meu ver. Em grupos que vivem próximo, a alimentação não seria assim, tão diferente. As aves, ingredientes nobres do medievo, compunham cotidianamente a mesa dos aristocratas, junto a pães e outros pratos muito parecidos com os que eram feitos pelos camponeses. Assim, penso que a cozinha camponesa seja também escrita nos compêndios culinários da Idade Média; ao historiador, porém, cabe o estudo e as reflexões quanto a estes meandros.

Apesar desse pequeno posto (e alguns outros, mas que pouco interferem na aprendizagem), o livro é extremamente acessível em termos de linguagem e informação.

A amazon.com.br está com essa obra em promoção, vale a pena conferir!

Espero que vocês tenham gostado e eu os aguardo na próxima semana.

Atééééééééééé!

quarta-feira, 30 de março de 2016

Ainda tentando me livrar do raio gourmetizador....



Fala, minha gente. Tudo bem com vocês?

A postagem que eu prometi na última semana, o "Na cozinha tem... #3" sobre o "Gastronomia no Brasil e no Mundo" está pronta. Mas, confesso, tive que atrasar um dia. E, decidi, atrasarei uma semana. Saiba o porquê.

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Ontem, ao longo do meu período na UFES, nas trocas que faço com meus colegas de curso nos corredores, ouvi algo sobre "brigadeiro gourmet de verdade, o bom, é feito com chocolate belga!".                                                                      


(o nome disso é "pausa de mil compassos".)


Ontem, ao londo do meu período na UFES, nas trocas que faço com meus colegas de curso nos corredores, ouvi algo sobre "pão de queijo gourmet.... é! É feito com um queijo italiano lá, maravilhoso! 'Grano'-num-sei-o-que-lá.......


(o nome disse é E.Q.M.).


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Na última semana, coloquei no ar o "Na panela tem... #2", analisando o texto do maravilhoso sociólogo Carlos Alberto Dória. Falei sobre a "emergência de sabores regionais", e preciso reiterar, brigadeiro e pão de queijo se inscrevem nessa lógica! São sabores regionais, são sabores nossos. Buscar amparo na Bélgica, na Itália..... é assim que fazemos cozinha brasileira? Fico com a questão nas mãos...

Falei, há algumas semanas, sobre a necessidade de se descolonizar a cozinha. Como vamos conseguir isso, se um dos maiores ícones da culinária brasileira, o famoso chefe Alex Atala, escreve as "Escoffiana Brasileiras", à sombra de Escoffier de sua machista e sistemática cozinha francesa do século XIX? 

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Preciso ressaltar: não estou falando mal da Bélgica, da Itália, da França. Longe de mim!

Mas preciso formalizar que quero falar bem da cozinha brasileira! Aquela que tem no brigadeiro o leite condensado, o toddy (nescau), a margarina.... no pão de queijo feito com aquele queijo comprado na feira ou nas mercearias os seus pés fincados. O queijo que, de tão amarelo, faz com que o umami rasque a nossa língua. Que delícia! O brigadeiro que, de tão doce, nos convoque a, deliciosamente, sanar a sede com um copo d'água bem gelada!

Então, é isso. Para essa semana, reflexão sobre os rumos da cozinha brasileira, reforçando a discussão da semana anterior.

Tchau, tchau!

PS: deixo aqui embaixo o meu artigo sobre a gourmetização da alimentação, já publicado aqui no blog, republicado para contextualizar a questão.


quinta-feira, 24 de março de 2016

Torta capixaba: tão importante quanto o ovo de páscoa!



Fala, minha gente. Tudo bem com vocês?

Hoje é postagem especial!!!!!!!!!!!!!

Em época de páscoa, ao bom capixaba não pode faltar o tradicional ovo e nem a TRADICIONAL TORTA!!!!

E aí que eu poderia escrever várias coisas sobre a torta, mas eu quero compartilhar com vocês uma das melhores coisas da minha vida: ouvir a minha orientadora falar!!!

A profa. Dra. Patrícia Merlo (minha digníssima e maravilhosa orientadora) fez e faz muito pela gastronomia local! Além de levantar a bandeira das tradições culinárias que fazem parte de nossa formação, ela escreve muito bem sobre isso! (Vou colocar aqui o currículo dela para vocês conhecerem os títulos dos livros!).

Se deliciem com o vídeo!!! E feliz páscoa a todos os apreciadores da nossa torta!

PS: em meu snapchat (fernandobaixo) eu estou colocando algumas curiosidades sobre a torta capixaba, vale conferir!

PS2: o siri, elemento importante na produção da torta capixaba, ainda é trabalhado artesanalmente aqui no ES. Em 2010 eu fiz uma pesquisa sobre isso, pesquisa essa publicada pelo Governo de Estado do ES neste link! Acesse!.


terça-feira, 22 de março de 2016

Na panela tem...#2



Fala, minha gente. Tudo bem com vocês?

PRECISO ME DESCULPAR!!! SINTO MUITO POR NÃO TER POSTADO NA ÚLTIMA SEMANA!!!

Estou em vias de dar início às atividades de provas na faculdade em que dou aula / estou fazendo um mol (=6,02x1023, lembra?) de trabalhos para o meu curso de História! (Gente, ser professor e aluno é uma loucura!). Assim, peço um milhão de perdões, por favor. Não deixem de conferir o nosso blog, tá? Foi só uma exceção, prometo que não ocorrerá de novo!

Bom, como prometido, vamos à análise do livro lindo do sociólogo Carlos ALberto Dória?

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DÓRIA, Carlos Alberto. Formação da Culinária Brasileira: escritos sobre a cozinha inzoneira. São Paulo: Três Estrelas, 2014.

Pessoal, este livro é simplesmente maravilhoso! Quem me acompanha no instagram (fernando_viana) viu que eu o engoli em poucos dias! Fiz questão de avaliá-lo com 5 frigideirinhas, porque o livre é bom demais da conta!

Antes de falarmos da obra, vamos ao autor. Carlos Alberto Dória é doutor em sociologia pela Unicamp (2007) e pós-doutor (2008-2011) pela mesma instituição. O currículo dele é lindo, mas maravilhoso mesmo é o arsenal de obras voltadas à alimentação. A escrita deste autor é simplesmente linda e provocativa! Eu o acompanho pelo blog E-Boca Livre - este que tem reflexões ótimas e que, em 2015, foram compiladas em formato de livro. Vale muito a pena! Se você quer saber um pouco sobre outros livros dele, também maravilhosos, clique aqui.

Vamos à obra!

"Formação da Culinária Brasileira" é, sem a menor sombra de dúvidas, um super serviço aos estudos sobre a alimentação brasileira. Num intenso diálogo com Gilberto Freyre e Luís da Câmara Cascudo (com algumas concordâncias e discordâncias, com algum diálogo mais intenso e com alguma tensão mais marcante com outro), Dória faz em sua obra um verdadeiro revisionismo daquilo que se cristalizou sobre a alimentação brasileira.

Em 279 páginas, a obra - de leitura fluida e extremamente prazerosa - é constantemente provocadora. Dividida em sete capítulos (além de apresentação e elementos finais do texto), o sociólogo trincha a cozinha mais elegante que os nobres dos séculos XVII-XVIII, certamente! 

O primeiro capítulo, "Formação da Culinária Brasileira", é o mais denso e intenso do livro. É neste capítulo que o autor reforça e quebra conceitos ao longo de todas as páginas. Ao meu ver, inclusive, é o que vale toda a obra. Apesar das últimas páginas se tratarem, ao meu ver, de uma projeção futurologista dos rumos da gastronomia brasileira, o resto é essencial para nos localizarmos em nosso consumo alimentar contemporâneo. É neste capítulo que ele conceituará cozinha inzoneira, elemento essencial para entendermos a sua perspectiva nessa obra.Segundo o autor, 

o adjetivo sugere o que é manhoso, enredador, além de enganador. Desse modo, pareceu-me apropriado para indicar o que fala ao paladar de maneira envolvente, esperta, porém cheia de aspectos claros e escuros. Algo nessa cozinha nos é absolutamente familiar, sensível, mas difícil de definir. É justamente em meio a essa dificuldade que faço meu caminho, tentando conduzir o leitor a uma compreensão melhor de nossa culinária, sem deixar de reconhecer, entretanto, as lacunas e enormes ciladas que há no percurso. (p. 12).

Linda essa fala, não é? Ao ler este capítulo, vamos permeando um pouco a noção de cozinha brasileira, essa que nos parece muito familiar, mas que é repleta de nuances desconhecidas a nós. Leiam tomando café e comendo biscoitos de avó! Isso fará diferença no proveito da leitura.

É neste capítulo, também, que vale a pena conhecermos um pouco de Casa-Grande e Senzala, de Gilberto Freyre, e História da Alimentação no Brasil, de Câmara Cascudo. Quem ainda não os conhece, entrem no Google acadêmico e busque resenhas dessas obras. Vale a pena!

No capítulo dois, "Entre secos e molhados", o autor convoca uma discussão fantástica sobre os alimentos secos e os molhados, e os que se inscrevem neste percurso - uma mistura de seco e molhado. Destaque à mandioca e ao milho, essenciais para entendermos um pouco da cozinha indígena tradicional brasileira e sua mistura às comidas caldosas portuguesas.

"A emergência dos sabores regionais" é uma verdadeira quebra de paradigmas, colocando em xeque as noções "senso-comum" que temos da alimentação brasileira. TODOS os professores de Gastronomia deveriam ler isso! É um soco em nosso estômago.

O trecho "Feijão como país, região e lar" trata do consumo do feijão ao longo de nossa história. É aqui, inclusive, que o autor dá o último golpe no mito (se é que ele ainda está de pé) de que a feijoada é um prato de origem africana - executado pelos escravizados africanos aqui no Brasil. Caso ainda reste alguma dúvida, acessem este artigo do prof. Dr. Henrique Carneiro e mate o mito da feijoada.

Em "Legitimidade e legibilidade à mesa", o autor põe uma discussão muito interessante: até quando o uso de produtos considerados típicos compõem uma cozinha considerada tradicional? Esses conceitos, inclusive, nos instrumentalizam para discussões como as da semana retrasada: que cozinha é essa que queremos quando convocamos um resgate à cozinha tradicional? Debate filosófico e estético, importante para ampliarmos os nossos debates sobre a cozinha feita nos brasis.

"O estilo feminino de cozinhar" convoca uma discussão acerca do feminino na cozinha. Perpassa a relação entre a cozinha caseira como fazer feminino e a cozinha profissional como masculino. Expondo a visão de Escoffier, questiona essas condições estáticas, convocando mulheres que são chefes, mas que ainda são minoria. (sugiro a leitura dessa entrevista com Roberta Sudbrack e dessa com várias chefes).

Por fim, "Propostas para uma renovação culinária brasileira" faz uma reflexão do que estamos, convoca-nos a pensar para onde queremos ir, nos questiona enquanto gastrônomos! Essencial para debates sobre cozinha, este trecho nos chama à realidade para pensarmos: o que queremos de nós mesmos enquanto cozinheiros? Vale demais a reflexão!


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Pessoal, por hoje é isso!

Reforço o pedido de desculpas, prometo que colocarei todas as leituras em dia para que isso não volte a acontecer!

Na próxima semana nós continuaremos com o projeto o "Na panela tem...", com a análise de Gastronomia no Brasil e no Mundo. Quem me acompanha pelo Instagram viu que eu já tive algumas questões com o livro, mas falaremos mais a fundo na próxima semana!

Ah, quarta-feira, amanhã, 23/03, é meu aniversário! Podem deixar recadinhos de parabéns! rs.

Muito obrigado pelo carinho e atenção de vocês. Nos vemos na próxima semana!

Tchau tchau!!



terça-feira, 8 de março de 2016

Deus é brasileiro, a gastronomia é inzoneira...

Sobremesa: formiga saúva sobre fatia de abacaxi
Chefe Alex Atala, D.O.M.

Fala, minha gente. Tudo bem com vcs?

Bom, como falei na postagem anterior, hoje o post é escrito a partir da sugestão da minha querida (e assídua) aluna, Thays. Ela fez um comentário na postagem sobre o Cozinheiro Pensante, deem uma olhadinha lá. Assim, Thays, te dedico!

Em seu comentário, alguns eixos apareceram: diálogo entre alimentação e medicina, produção de orgânicos, contato com o produtor, uso de transgênicos e agrotóxicos. Se nós amarrarmos isso tudo, vemos uma realidade clara: a que passa a cozinha brasileira! São movimentos autênticos da cozinha brasileira? Não! Afetam diretamente a gastronomia brasileira? Sim! Vamos discutir como e porquê.

Primeiro, vale lembrarmos que, como reposta a um processo de industrialização intensificado ao longo dos séculos XIX-XX, a cozinha saiu de casa e foi para as indústrias; em fins do século XX e no decurso do XXI, a cozinha retoma seu espaço na casa das pessoas. A cozinha, inclusive, assume espaço de "estar" - à guisa da "sala de estar", inaugurando a "cozinha de estar" - nos lares contemporâneos. Mas precisamos enfatizar: essa cozinha que brilha nos lares de classe média são as cozinhas para diversão, não a cozinha cotidiana. Não podemos perder isso de vista.

Uma cozinha divertida não é um movimento isolado e deslocado: se a medicina e a cozinha começaram a traçar caminhos diferentes desde o século XV, no século XIX a medicina vai buscar entender as propriedades dos alimentos segundo os elementos que o constitui, segundo o historiador Felipe Fernandez-Armesto, em seu "Comida: uma história".  Não podemos esquecer, porém, que isso foi na Europa. Aqui no Brasil, certamente, este movimento ganha força nos últimos 3 anos (talvez um pouco mais), com a Bela Gil - que, ao meu ver, é o expoente máximo contemporâneo da alimentação medicinal e filosófica.

Quanto ao consumo de orgânicos, os estudos sobre o uso de agrotóxicos e transgênicos - sobre seus efeitos negativos (ao solo, aos animais e ao homem), principalmente - também são recentes. Vamos ressaltar, ainda, que orgânicos são alimentos plantados sem uso de substâncias químicas laboratoriais, manipuladas visando uma melhor produtividade dos alimentos pela indústria, ou mesmo o uso de sementes geneticamente modificadas com o mesmo fim, o de produzir, produzir, produzir...... Logo, os alimentos orgânicos nada mais são que os produtos de uma agricultura que está à mercê da natureza (clima, solo, estações do ano, sazonalidade), dando melhores produtos em determinadas épocas, deixando de dá-los em outras. Logo, a alimentação orgânica exige uma adaptabilidade do homem à natureza, processo pelo qual o homem contemporâneo terá imensa, extrema dificuldade por passar.

Mas o que isso tudo tem a ver com a cozinha brasileira? Tudo! Estamos exatamente neste momento: valorização da cozinha (mas não a cotidiana, só a ligada à diversão), que se alimenta de modismos (e a cozinha dita "natural" figura como expoente deste processo), o que leva o consumidor a procurar a comida orgânica, o contato com o produtor... enfim, um compilado inzoneiro de movimentos de expressão europeus. (Quer conhecer mais como isso aconteceu na Europa? Clique aqui!). 

Como isso tem acontecido entre os chefes de cozinha hoje? Bom, a exemplo do que se faz na Europa, os chefes têm buscado conhecer melhor o seu produtor, têm buscado trabalhar junto a ele no que tange à disponibilidade de produtos e à sazonalidade do plantio. Resultado disso aqui no Brasil: Alex Atala mandou vir formigas saúvas da Amazônia para São Paulo, fazendo o prato que é destaque desta postagem. E eu te pergunto: qual é a brasilidade que há no prato? Quem, brasileiro, consome saúvas por aí, como se isso representasse o nosso cotidiano, o nosso entendimento sobre a brasilidade inerente ao brasileiro contemporâneo? Mas o objetivo dele era, mais que colocar formigas sobre um prato, ajudar os índios que as produzem para o chefe. Intenção: ótima! Proposta: Ok. Questão: será que estamos fazendo isso certo?

O que eu quero pôr em xeque aqui é: há uma gastronomia essencialmente brasileira, a ponto de entendermos os produtores de orgânicos como aliados da alimentação contemporânea? É possível haver uma brasilidade no que se consome (seja por diversão ou na cozinha cotidiana) a partir de uma filosofia nossa, autêntica? É POSSÍVEL DESCOLONIZARMOS A COZINHA BRASILEIRA?

Sei que são questões densas e repletas de polêmica, mas que devem aparecer e que nos permitam refletir sobre o nosso papel na cadeia produtiva enquanto profissionais e/ou consumidores de alimentos. Detalhe: encontrei essa provocação em um livro bárbaro do Carlos Alberto Dória, leitura mais que recomendada! 

E aí, vamos conversar?

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Pessoal, espero que vocês tenham gostado da postagem de hoje! Sei que há uma densidade muito grande a ser evidenciada acerca dessa temática, e que acabamos reduzindo algumas coisas, falando num análise feita a voo de pássaro e num aumento de lupa limitado. Mas vamos ampliar a discussão! Quero mesmo que você, cozinheiro, chefe, consumidor ou amante não profissional da cozinha, comente a postagem, expondo o que você pensa!

Na semana que vem nós vamos continuar o "Na panela tem...", agora com o livro do Dória, este que citei na postagem e coloquei o link ali! Gente, é uma obra-prima da alimentação brasileira! Escrita maravilhosa e questões contundentes! Fica a dica da leitura e a dica para a análise na próxima semana.

No mais, espero que estejam curtindo as postagens e as provocações que tem aparecido por aqui. E eu insisto: deixe nos comentários a sua impressão do nosso espaço! É um termômetro muito bacana para darmos rumo aos temos aqui do blog. Tá bom?

Bom, a gente se vê na semana que vem, então! Obrigado e Cruj Tchau de novo pra vocês (pra você em especial, Thays!).

terça-feira, 1 de março de 2016

Na panela tem... #1


Fala, minha gente! Tudo bem com vocês?

Pois é, estamos dando início nessa semana ao projeto "Na panela tem...". Este projeto consiste em analisarmos livros publicados e que tenham como mote a reflexão acerca das práticas alimentares. Certamente, não figurarão apenas livros de cozinha ou história da alimentação, travaremos um diálogo bem amplo, de modo a pôr a cozinha em xeque a partir de vários vieses. 

Para a primeira postagem, "Comida como Cultura" foi um mega presente. Relê-lo e observar coisas que haviam passado nas leituras anteriores foi mesmo uma delícia. Dividi com os alunos do 3o período um dos textos deste livro, resolvi aproveitar e ler tudo. Foi ótimo! Vamos à análise!

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MONTANARI, Massimo. Comida como Cultura. Tradução de Letícia Martins de Andrade. São Paulo: Senac, 2008, 207 pp. (A tradutora escreveu uma resenha da obra que vale a leitura!)

Com apresentação à edição brasileira do maravilhoso professor Henrique Carneiro, o escrito de Massimo Montanari se torna um presente ainda mais especial para nós, os leitores brasileiros.

O autor Massimo Montanari é historiador medievalista e professor da Universidade de Bolonha, na Itália. Suas pesquisas giram em torno da produção agrícola ao longo da Idade Média e, assim, foca seus trabalhos na alimentação camponesa, especificamente.

Como o título do livro já apresenta, a perspectiva de Montanari é trabalhar as relações entre a alimentação (e não a cozinha, o que é importante) e a percepção do que é cultura. Para atingir seu objetivo, é perceptível a inspiração nos trabalhos do antropólogo Claude Levi-Strauss (1908-2009), com quem pactua da noção maior que permeia o trabalho: a linguagem e a cozinha são os primeiros produtos culturais de um grupo social. Fantástico, não é?

Na primeira parte, intitulada "Fabricar a própria comida", o autor fala principalmente da relação entre natureza e cultura. Não caindo nos determinismos biológicos e geográficos de manifestação cultural, Massimo Montanari busca nos apresentar quais são as relação entre a natureza e a formação cultural - com destaques, claro, à alimentação (mais que isso, à produção da comida). Além de refletir sobre o que a natureza disponibiliza ao homem, o autor fala das tentativas do homem de dominar a natureza e os ciclos naturais, de modo a ter os mesmos alimentos ao longo do ano todo, ao mesmo tempo em que aprende a conviver com os vários período aos quais está sujeito - períodos de sazonalidade.

A segunda parte, "A invenção da cozinha", trata dos modos de fabricar a comida e a noção de civilização. O personagem principal deste trecho é, sem dúvidas, o fogo, e como seu domínio foi essencial para que, segundo o autor, o homem se diferenciasse das "bestas". Além do fogo, a cozinha oral e a cozinha escrita também são discutidas por ali, evocando as relações entre prazer e saúde na alimentação ao longo da história. Essa parte, em especial, É A MAIS LINDA DO LIVRO TODO! Todo mundo deveria ler esse trecho, é emocionante.

Já a terceira parte, evocada como "O prazer (e o dever) da escolha", trata dos hábitos alimentares e das escolhas (?) quanto ao consumo da comida. O brilhoso Brillat-Savarin (1755-1826) é o sopro de inspiração para este trecho. Quem já leu o Fisiologia do Gosto (livro que analisaremos mais à frente) ficará encantado com esse trecho. Em suma: o gosto é um produto social! E aqui estão algumas provocações muito importantes para compreendermos isso.

A última parte, "Comida, linguagem e identidade" é, certamente o trecho mais antropológico da obra. Chegando a comparar a comida à gramática, Massimo Montanari nos expõe hábitos/atos totalmente mecânicos de nosso cotidiano, jogando na nossa cara como a alimentação é, apesar de mecânica, um acervo de fazeres lindamente instituídos em nossas vidas.

Não bastando o livro ser fantástico, ao invés de uma parte com referências bibliográficas, trás um "GUIA À LEITURA", onde divide os assuntos por interesses, estes homônimos às partes de seu livro. Não é uma ideia fantástica? Vários destes livros eu adquirirei em breve!

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Análise

A obra é maravilhosa! A escrita de Massimo Montanari é rápida e fluida, ao mesmo tempo em que a beleza de sua prosa nos trás conceitos densos e importantes. Vale reforçarmos que a sua obra é de grande importância, já que "Comida como Cultura" é mais um livro da carreira de Montanari, que tem o célebre "História da Alimentação" (1993) em seu extenso currículo.

Vale ressaltarmos que a obra exige alguma instrumentalização com alguns conceitos, já que fala sobre Idades Antiga, Média, Moderna e Contemporânea de forma muito ligeira. Seus conceitos vão e voltam, e por vezes são expressos pelos próprios consumos alimentares. Se parecer difícil num primeiro momento, não desista: a fluidez aparece mais rápido que imaginamos.

Algumas jogadas com as palavras (o texto original é em italiano) acabaram não dando muito certo na obra traduzida, o que exigiu um bocado de notas da tradutora, mas nada que comprometesse o conteúdo. Mais que isso: a tradutora soube escolher o que deixar no estrangeiro (já que o autor utiliza trocadilhos em italiano, latim e francês), e foi bem gentil em nos deixar a par das intenções do autor.

Apesar da tradução maravilhosa, a profa. Letícia Martins de Andrade acabou deixando passar alguns probleminhas de anacronia. Isso acontece, por exemplo, quando o autor se refere a um bolinho de feijão (???????) na Idade Média européia, apesar do feijão ser americano e só ter ido ao Velho Mundo durante a Modernidade (séc. XV-XVIII, aproximadamente). Poucas coisas, porém, passaram à criteriosa vista da tradutora, que é historiadora da arte, e não da alimentação.

Devemos enfatizar, ainda, o trabalho da Editora Senac São Paulo. Nos presentear com essa obra é permitir que o universo de estudo da História da Alimentação no Brasil se ressignifique, haja vista a importância da obra o do autor.

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E aí, gostaram? Espero que sim!

Na próxima semana nós escreveremos sobre a sugestão da queria Thays, minha aluna do 3o período, que propôs uma discussão sobre alimentação e estética corporal. Já estou aquecendo as teclas do computador!!!

Não deixem de comentar esta postagem! Estou louco pra saber o que você achou desse novo projeto!

Então nos vemos na próxima semana! Tchau, gente!!!!

terça-feira, 23 de fevereiro de 2016

Livros de cozinha: expressão da realidade alimentar?

Fala, minha gente! Tudo bem com vocês?

Bom, na última semana nós falávamos sobre o foi a cozinha ao longo da história, falávamos sobre a relação entre alimentação e medicina, além de tentarmos aferir o momento em que essa relação ocupa instâncias mais autônomas e menos dependentes. Lembram?

Pois é. Como promessa é dívida, continuaremos a falar sobre essa relação, agora, a partir dos livros. 

Já falamos sobre o primeiro livro de cozinha a ser publicado, já falamos sobre o autor, os processos de autonomia que seguiram... enfim, falamos um bocado sobre essa história toda. Mas falamos pouco sobre os livros em si; nosso tema, então, vai se localizar em analisar os escritos em si.

No post anterior, falei sobre os primeiros escritos que tinham a cozinha em seu escopo (Edipateia e De Re Coquinaria). Vimos que a alimentação era ali expressa como citações do que eram boas iguarias e quais lugares produziam melhor determinados produtos. Lembram-se?

Pois bem, a coisa foi assim por muito tempo. Há escritos da Antiguidade e da Idade Média que trazem a alimentação em seu escopo também - normalmente, para não esquecermos, alidada a dicas de bem-estar. A alimentação como destaque, porém, começa a ganhar espaço na Itália do Renascimento.

Considerações importantes:
I. A Itália só se unifica no século XIX. Por isso, falar da Itália do Renascimento é falar de um conglomerado de territórios que formam a bota (forma da Itália no mapa), repleto de costumes/culturas peculiares;
II. Nesse período, os territórios italianos detinham o destaque máximo para a Europa. Assim, buscar referências de vida elegante por ali era buscar viver à italiana.
III. Livros - sejam quais forem - ao longo da história eram voltado SOMENTE às classes abastadas, que eram as letradas. Não falam, portanto, na esmagadora maioria das vezes, do que se alimentavam os estamentos populares. Apesar disso, muitos dos livros falavam de pratos que eram conhecidos pelo povo, mas associavam esses alimentos a outros, de consumo de nobres, como as aves, seres abençoados por estarem perto do céu (e, portanto, de Deus), que serviam de comida somente à aristocracia e ao clero. 
IV. Importante lembrarmos que os livros tinham por objetivo, durante grande parte da história, exportar hábitos alimentares distintos, voltados à aristocracia. Até o século XIX, não havia a preocupação em NACIONALIZAR a cozinha (e nada, já que não havia nação antes desse período). 

Comer o que se comia, como se comia e quando se comia, inspirados nos italianos, fazia dos demais europeus verdadeiros admiradores dos costumes ítalos. Os padrões de vida - estéticos, em especial - eram os inspirados no que emanava dali.

Os livros que tratam dos "bons modos" ou "bons costumes" traziam em seu escopo conteúdo sobre maneiras de se comportar, formas de educar as crianças e, como não poderia faltar, conteúdo ligado À alimentação. Mais que receitas, esses livros discutiam o que deveria ter em uma refeição, quais eram os dotes relacionados à alimentação (como o ato de trinchar de modo elegante as várias carnes) e o que deveria haver nas mesas mais abastadas, de modo a desprezar as de menor $uporte financeira - se é que vocês me entendem.

Os livros que falam de alimentação durante o Renascimento não falam sobre quantidades de ingredientes a serem utilizados nas receitas.

Segundo o historiador Ariovaldo Franco, em seu De Caçados a Gourmet, a ida de Catarina de Médici à França foi um dos elementos mais importantes para o deslocamento do eixo de centro de exportação cultural europeu. A partir do século XVII, França se torna o foco de atenção dos europeus para buscar referências de distinção e elegância.

Com La Varenne e a emergência do cozinheiro pensante, os livros eram então escritos por cozinheiros e para cozinheiros. Assim, não havia citações de quantidades exatas em nenhuma receita. Quando muito, os autores da Modernidade falavam de unidades pouco conhecidas hoje - em livros portugueses, "arrátel" é uma unidade extremamente utilizada, as demais pouco ou nada aparecem. Logo, cozinheiros letrados e já iniciados na arte da cozinha eram o público consumidor dos livros de cozinha até o século XIX.

Os dois primeiros livros de cozinha brasileiro são publicados no século XIX. O Cozinheiro Imperial (1839) e o Cozinheiro Nacional (1874?) buscavam nacionalizar as práticas alimentares, apesar de serem ainda muito inspirados nos livros de cozinha portugueses (Arte de Cozinha [1680] e o Cozinheiro Moderno [1780]). A segunda obra brasileira já trazia o vatapá e o caruru em suas preparações, apesar das imprecisões das receitas, o que reforça o público para quem eram escritos os livros.

Pessoal, não devemos esquecer uma coisa importante: os livros de cozinha são escritos para os HOMENS Sim, para os homens. Não haviam mulheres mestres de cozinha antes do século XX. O primeiro livro de cozinha que trás a mulher como um público alvo potencial consumidor é o Cozinheiro dos Cozinheiros, apesar de ser uma obra escrita por homens. Auguste Escofier fala da inutilidade da mulher para a cozinha industrial em suas obras. Bizarro, não é? Pois é, mulheres só escreverão livros de cozinha no século XX.

É na década de 1940 que se inaugura no Brasil as publicações Dona Benta. Voltadas ao público feminino, trazia receitas e dicas de comportamento para as mulheres donas de casa. Isso mesmo! Nas primeiras edições, inclusive, trazia gravuras que evidenciavam a importância da mulher cozinheira para segurar o marido em casa! Vás gravuras estão nessa edição aqui!

É a partir da década de 1950 que os livros trarão, mais que gravuras dos pratos, fotografias. Surgem, também neste período, os livros com quantidades precisas de ingredientes, o que tornou a cozinha muito mais fácil.

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E aí, gostaram? Espero que sim!

Apesar do pessoal curtir as publicações aqui em nosso blog - e eu ver que há dias que há mais de 20 visitas por aqui - eu só recebi um comentário até agora (obrigado, Thays, minha aluna querida). Os comentários são um importante termômetro para a gente escolher o caminho a ser seguido. Peço a gentileza de vocês que deixem suas impressões e sugestões nos comentários, ok?

As obras que inspiraram a publicação de hoje são Comida como Cultura e A Mesa Posta, ambas italianas e publicadas aqui pela editora Senac. Acessem a resenha da primeira obra aqui, escrita pela tradutora do texto original (de Massimo Montanari).

Espero que tenham gostado e até a semana que vem! Tchau!

terça-feira, 16 de fevereiro de 2016

Vamos continuar aquele papo e O Cozinheiro Pensante

Fala, minha gente! Tudo bem com vocês?

Já nos recuperamos todos do carnaval? Espero que sim! Eu já retomei o meu trabalho na quinta-feira passada. A correria do ano, enfim, está oficialmente inaugurada.

Quero saber de vocês: gostaram do texto de carnaval? Eu achei muito bacana a reflexão sobre a "carne" (em sentido lato e stricto, rs.) e a guarda da quaresma para a Páscoa. Falava na última sexta-feira com os meus alunos acerca da influência da religião sobre os hábitos alimentares, e acho que esse período, ora em tela, mostra bem isso.

Mas hoje, como prometi no post da segunda semana de blog, retomamos as discussões a respeito da cozinha e do papel do cozinheiro.


Le Cuisinier Fraçois, de Pierre de La Varenne (1618-1678), primeiro 
escrito de cozinha publicado (1653) por um cozinheiro

Se você leu a minha publicação no jornal (que postei no último dia 07), pôde ver como os livros de cozinha e os cozinheiros influenciaram as tramas atuais da alimentação. Se o raio gourmetizador faz parte de nosso cotidiano, suas raízes são históricas e nos remetem a antes da era Cristã.

É a partir dessa perspectiva que quero expor a continuação do assunto "Cozinheiro Pensante" e dos livros de cozinha.

A medicina e a alimentação tiveram uma ligação histórica. Conforme nos conta o historiador Felipe Fernandez-Armesto, em seu "Comida, uma história", a nutrição só será desvinculada da medicina e vista como um campo de atuação terapêutica a partir do século XIX. Isso nos mostra, portanto, que os insumos alimentares são dotados de ações terapêuticas e, portanto, foram o remédio na cura de muitos males pela medicina.

Desde Hipócrates (460 a.C.-370 a.C.), pelo menos, a saúde foi vista sob a ótica da teoria dos humores. Esta teoria diz, em linhas gerais (acesso o link anterior para conhecer um pouco mais) que a saúde é pensada a partir dos humores - coléricos, sanguíneos, fleumáticos e melancólicos - e que, para uma saúde plena, tais condições humorais deveriam estar em equilíbrio. Vale ressaltar, ainda, que cada humor condiz, segundo essa teoria, a um órgão e a um fluido corpóreo; os alimentos, por sua vez, influenciavam no equilíbrios estre estes órgãos e estes fluidos.


A teoria humoral

Os alimentos eram classificados em frios, quentes, úmidos e secos. Como podemos pelo quadro acima, seus consumo era prescrito pelos médicos para visar o equilíbrio da saúde. De modo sintético, se seu humor enquadrava-se mais próximo ao colérico, seu órgão mais atacado é o fígado, seu fluido corpóreo mais significativo é a bílis amarela, seu humor se localiza entre o seco e o quente, e o elemento que melhor o representa é o fogo; sua alimentação será prescrita a partir de alimentos úmidos e frios, de molo q colocá-lo em equilíbrio neste quadro. Conseguiram entender?

Este processo, como dito, foi muito importante até o século XIX. Em pesquisas e conversas junto à minha orientadora, descobrimos que o rei português D. João V (1689-1750) teve prescrições feitas por seu médico e que foram transformadas em livro (me perdoem! Esqueci o nome da obra e a minha orientadora está de férias! Assim que ela voltar, peço a ela o nome da obra e linko o pdf dela aqui).

Bom, retomando a questão, a cozinha e a medicina, portanto, estiveram juntas ao longo de muitos anos. Os cozinheiros das cortes (na Antiguidade e na Idade Média) tinham por premissa, então, reproduzir para seus senhores o que lhes era medicado e, em ocasiões especiais, o que era sinônimo de opulência, segundo a moda do período em que estavam inscritos. Detalhe: esses modismos eram criados entre as cortes principalmente por influência da igreja católica, que dizia, por exemplo, que os pássaros eram os alimentos mais nobres, pois voavam e, por isso, estavam mais perto de Deus. Essas noções se modificam ao longo dos tempos, mas é na Modernidade que o cozinheiro começa a ocupar um lugar de destaque.

Em 1651, na Inglaterra, o cozinheiro francês Pierre de La Varenne publicou seu livro de cozinha, recusado pela França num primeiro momento. Seu livro ganhou expressões naquele país, o que incentivou o rei francês a publicar o livro do cozinheiro em 1653. Segundo os historiadores Philip e Mary Hyman, que escrevem o capítulo 35 (intitulado "Os livros de cozinha na França entre os séculos XV-XIX") do célebre História da Alimentação, este livro inaugura a figura do que chamam de o cozinheiro pensante. Este cozinheiro pensante, portanto, abandona pouco a pouco o seu papel serviçal para assumir posto de destaque nas cortes europeias. Os alimentos passam a ser consumidos não mais exclusivamente por indicação médica ou por modismo religioso, mas por sugestão ou indicação do cozinheiro. Repare: não se trata, ainda, do chef du cuisine, termo que ganha destaque somente com Auguste Escoffier (1846-1935), mas do cozinheiro (ou, como será chamado Domingos Rodrigues (1637-1719) em Portugal, mestre de cozinha).

A partir deste período, o cozinheiro foi ganhando destaque nas cortes europeias, tornando-se as grandes referências das tendências alimentares. Mais que os cozinheiro, os cozinheiros franceses ocuparam esse posto, já que a França é, desde a Modernidade, a referência para a gastronomia ocidental - talvez, para a gastronomia mundial. 

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E aí, gostaram do texto? Não deixem de comentar! Esse é o feedback de recebo da percepção de vocês. Fiquem à vontade para expressar sua opinião/percepção.

Viram que o blog está de layout novo? Pois é! Sugestão da querida Elaine Vieira, amiga jornalista de muitas primaveras atrás. Ela me sugeriu colocar um fundo branco, de modo que ficasse mais atrativo e menos cansativo para ler. Como sou um ser incapaz, peguei esse plano de fundo sugerido pelo blogspot, mas eu até gostei! Gostaram também? Comentem!

Bom, se vocês repararem, todos os textos são repletos de links. Acessem-nos para ampliar as discussões e/ou para conhecerem as obras sobre as quais eu falo aqui. Todas essas obras fazem parte do meu acervo pessoal e eu as considero fundamentais para os estudos propostos aqui em nosso blog.

Na semana que vem eu pretendo falar um pouco mais sobre os livros de cozinha, especificamente. Então fiquem ligados para a próxima postagem na terça-feira da semana seguinte, ok?

É isso! Boa semana para todos nós e espero que tenham gostado.

Cruji-tchau!

terça-feira, 9 de fevereiro de 2016

Antes de continuarmos aquele papo...

cena-de-carnaval-debret
Cena de Carnaval, Debret, aquarela sobre papel, 18 x 23 cm, 1823


Fala, minha gente! Tudo bem com vocês?

Pois é! Postagem em pleno carnaval!!! Blog bombando! A todo o vapor!

Hoje eu continuaria o assunto da última semana, mas é impossível não fazer menção ao carnaval aqui. Assim, antes de continuarmos aquele papo, vamos falar um pouco sobre o carnaval? Acho super digno!

Para começar o assunto, fui buscar inspiração em outros espaços que trouxessem a temática à tona de uma forma bacana. Adorei este post deste blog. Joelza, dona do blog, está de parabéns! Não foi a toa que trouxe de lá até a imagem acima: uma obra de Debret retratando o carnaval. Assim, aproveitando o ensejo, quero trazer, além da relação entre o carnaval e a alimentação, a importância da obra de Debret para a gastronomia. Vamos lá?

Bom, vamos ao que nos interessa: o carnaval. Apesar de ser uma festa popular, este período marca o adeus à carne, precedendo um intervalo de jejum e sacrifícios antes do renascimento de Jesus Cristo (a Páscoa), conhecido por quaresma. Assim, para fazer jus aos 40 dias de abstinência, fazia-se as comemorações das maneiras mais extravagantes possíveis, de acordo com as tradições locais. Comia-se a carne, bebia-se o vinho e a cerveja, comemorava-se de forma veemente, já que os próximos dias seriam de grande sacrifício. Para saber um pouco mais da história dessa festa, clique aqui. O texto é bacana e bem simples, fácil de ser compreendido.

E quando essa festa chega ao Brasil? Durante a colonização, claro! "Colonizar" não se trata só de matar índios e enxertar o território de pessoas: com os "colonizadores" chegam, também, hábitos, costumes, toda complexidade ligada ao habitus das pessoas que chegam à nova terra. Assim, comemorava-se o carnaval aqui da maneira que era possível, haja vista as possibilidades aqui oferecidas serem bem diferentes das possibilidades em Portugal, não é?

A chegada da família real ao Rio de Janeiro, em 1808, causou um verdadeiro alvoroço. Não era só uma comitiva com milhares de pessoas que ali aportavam, eram hábitos e fazeres que estavam para ser reatualizados. Era a corte do reino que trazia o que havia de mais distinto. Era a fonte de inspiração da elite carioca. (Neste artigo, falo um pouco sobre as mudanças e a exportação de novos hábitos entre as elites durante a modernidade. Vale a leitura!)

Em 1816, chega ao Brasil, a convite do regente, D. João VI, uma comitiva de franceses para "ajudar" no processo civilizador do Brasil. Eram artistas (pintores, escultores) que tinham como premissa a modernização à francesa da terra tupiniquim. Um dos pintores que se destacou neste processo foi Jean-Baptiste Debret, não por ser um artista melhor que os demais, mas por ter publicado, já de volta à França, a obra intitulada Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil. Ao longo dos 15 anos que esteve aqui, Debret buscou entender o cotidiano da população que vivia no Rio de Janeiro de sua época, observando não só a elite, mas os costumes do povo em geral. Em sua obra, retratou uma série de costumes - muito se deve a ele, inclusive, o que se sabe sobre a alimentação no Brasil colonial durante a estadia da corte na capital do Brasil. 

Ao comparar os festejos de carnaval entre o Brasil e a Europa, o artista logo constatou que as comemorações aqui eram bem diferentes dos bailes de máscara, característicos da Europa de sua época. Numa de suas conclusões sobre a festividade, Debret diz que

"Para o brasileiro, portanto, o carnaval se reduz aos três dias gordos, que se iniciam no domingo às 5 horas da manhã, entre as alegres manifestações dos negros, já espalhados nas ruas a fim de providenciarem o abastecimento de água e comestíveis de seus senhores, reunidos nos mercados ou em torno dos chafarizes das vendas. Vemo-los aí, cheios de alegria e saúde, mas donos de pouco dinheiro, satisfazerem sua loucura inocente com a água gratuita e o polvilho barato que lhes custa cinco réis".

Os dias gordos, conforme apresentamos lá em cima, eram os dias de carne, os dias dos excessos que antecediam a quaresma. A alimentação, sem a menor sombra de dúvidas, ocupa um lugar importantíssimo nos festejos de carnaval.

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E aí, gostaram do texto de hoje? Deixe o seu comentário aqui, vamos trabalhando pra deixar esse espaço cada vez mais democrático e interessante para os leitores!

Aproveitando o ensejo, leram o meu texto que foi publicado no último domingo? Gostaram de saber um pouco mais sobre a gourmetização ao longo da história? Falei no último texto e reitero: adorei escrever sobre este processo! Comente aí o que você achou!

Busco escrever os textos com links que me ajudaram em sua construção, e acho bacana que vocês os acessem também. Vale a pena nós conhecermos o que outras pessoas estão falando sobre este tema também. Gostou dos links? Comente aqui também!

Galera, por hoje é isso. Espero que tenham gostado! Nos encontramos na próxima semana de novo. Tchau!


domingo, 7 de fevereiro de 2016

Quando gourmetizaram a alimentação

Fala, minha gente! Tudo bem com vocês?

Como vai o domingão de carnaval? Tudo ótimo?

Pois é, pra quem não teve a oportunidade de ler o meu texto no jornal de hoje, consegui colocar a foto dele nesta postagem. Espero que tenham uma leitura agradável!

Não se esqueçam: apesar de ser carnaval, terça-feira teremos mais um texto aqui no blog, certo?

Abração, boa folia!


terça-feira, 2 de fevereiro de 2016

O começo dessa História



Fala, minha gente! Tudo bem com vocês?

Pois é, missão dada (por mim mesmo) é missão cumprida (por mim mesmo também)!
Sejam bem-vindxs ao segundo texto do nosso blog.

Como firmei compromisso na primeira postagem e na descrição deste blog, começaremos hoje as discussões que envolvem gastronomia e pesquisa! Sim! Para isso, então, quero convidá-los a dividir comigo esses apontamentos introdutórios que comporão a postagem.

Antes de iniciarmos, porém, vale ressaltarmos que os textos que darão base a esta discussão são a entrevista com o historiador Jacques Revel, autor do capítulo intitulado “Os usos da Civilidade”, na obra “História da Vida Privada 3”, de P. Ariés e G. Dubby,  além do artigo “A História da Alimentação:balizas historiográficas”, dos professores Ulpiano Bezerra de Menezes e Henrique Carneiro.

De antemão, é necessário destacarmos dois aspectos fundamentais:
- A alimentação só galga espaço como objeto sistematizado pelas ciências com a Antropologia do século XIX. Antes disso, a alimentação se limitava a tratados culinários e médicos (teremos uma postagem sobre isso em breve). Logo, pensar a alimentação a partir de uma perspectiva sistematizada é um movimento extremamente recente;
- O enfoque dado às discussões apresentadas contará com material produzido por pesquisadores de várias áreas, mas será direcionado por um pesquisador da História. Assim, caso alguns termos fiquem técnicos demais ou difíceis de compreender, deixem nos comentários, darei um jeito de tornar mais palatável assim que possível. Vale ressaltarmos que não se trata de um texto com rigor acadêmico, mas de um espaço de fomento à curiosidade. Caso queira se aprofundar no assunto, os link estão disponíveis acima.

Já de início, vale ressaltarmos que as estacas que delimitam o espaço de produção intelectual nessa área se confinam num espaço delimitado. Logo, França, Itália, Alemanha, Espanha e Áustria são os países pioneiros na produção intelectual ligada à alimentação. Passaremos pelo Brasil também, mas é necessário não perdermos de vista que a produção nessa área ainda é pouca aqui em nosso país.
Apesar da sistematização das produções na área serem recentes, a história é repleta de representações que referenciam a alimentação desde a antiguidade, e são produzidas a partir de seus vários enfoques. Menezes e Carneiro (p. 3) distinguirão, portanto, esses enfoques em cinco grandes subcategorias: o biológico, o econômico, o social, o cultural e o filosófico.

A partir dessa segmentação, a alimentação é percebida em suas várias nuances. A alimentação a partir do enfoque biológico tem sua ligação fortemente marcada com os estudos médicos, já que é desde a Antiguidade que as dietas alimentares compõem parte importante no tratamento de doenças, além dos conhecimentos produzidos em botânica e zoologia e propiciadora à emergência da nutrição no século XIX. O enfoque econômico nos deixa claro a importância dos alimentos nos ciclos econômicos ao longo da história: especiarias, cana-de-açúcar, café, tabaco, farinha. A noção de cultura material, inclusive, é o que convoca a história a dar importância à alimentação no século XX. O enfoque social, por sua vez, tema principal da expressão deste blog, situa-se na própria formação das sociedades, uma vez que estas têm em comum a língua e a alimentação. Apesar de estar na base da formação social, a alimentação ganha suas expressões como objeto da História, de fato, a partir da década de 1970. Ao lado do social, o enfoque cultural busca compreender a alimentação (técnicas de cocção, ingredientes, dieta etc.) como expressão além da nutricional. Dito de outra forma, busca-se compreender os meandros ligados aos fazeres alimentares, não à ingestão do alimento em si; busca-se perceber os códigos alimentares. Por fim, a questão filosófica se desmembra em ética (escolhas alimentares, por exemplo) e estéticas (de foro íntimo às questões culturais e sociais).
Essas percepções apontadas pelos historiadores brasileiros são importantíssimas para entendermos parte do atual percurso do trabalho com a história da alimentação. Mas isso só é possível hoje porque o século XX presenteou a História com discussões que extrapolavam as biografias sobre as grandes personalidades do passado e os ciclos econômicos.

Visando ampliar o debate historiográfico no século XX, fundou-se na França a revista intitulada Annales. As publicações da revista eram extremamente revolucionárias para a as época, quando a história começa a ampliar suas nuances de reflexão, revendo seus próprios conceitos (o que é História? como fazer História?) e ampliando seus objetos de análise. Em franco diálogo com a Antropologia, a História se permitiu novas abordagens e novos métodos. Foi sob a direção de Fernand Braudel, porém, que alimentação conseguiu entrar, de fato, para várias publicações na revista. E foi sob a direção de Jacques Revel que a alimentação ganhou seu status de objeto de expressão da cultura material social. Isso representou um marco!
Apesar disso, no Brasil a alimentação como objeto traçou um rumo bem peculiar. Fomos, inclusive, desbravadores de abordagens étnicas com Luís da Câmara Cascudo! Querem saber mais sobre isso? Tema da próxima postagem!

Por hoje é isso. Gostaram? Comentem!

Aproveito o ensejo para convidá-lxs a lerem o meu texto que será publicado no próximo domingo de carnaval (dia 07/02) no jornal A Tribuna. Reforçando a compreensão de gastronomia como manifestação cultural e prática histórica, trouxe à tona um tema que gostei muito de refletir: a história da gourmetização. Pois é, as preferências alimentares figuram ao longo da história (farei um post sobre isso em breve) e são aferíveis a partir de uma série de documentos – cito dois em meu artigo. Leiam e façam a crítica aqui nos comentários.


Outra coisa muito bacana para o crescimento das pesquisas em gastronomia: a Revista Ágora, publicada pelo Departamento de História e Geografia da Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC), abriu nova chamada de artigos. Com o dossiê intitulado “Gastronomia: saberes e fazeres”, a revista dá visibilidade ao campo de estudos em questão aqui neste blog, além de fomentar as produções na área. Com uma temática ampla, e por se tratar de uma revista do departamento de História da universidade, as apostas estão circundando os artigos que consigam contemplar os fazeres tradicionais gastronômicos. Os artigos serão aceitos para emissão de parecer até o dia 31 de março. Se você quiser conhecer alguns dos fazeres gastronômicos registrados como patrimônio imaterial brasileiro (vai que rola uma inspiração, né?), acesse o link dos dossiês de registros do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN).