
Sobremesa: formiga saúva sobre fatia de abacaxi
Chefe Alex Atala, D.O.M.
Chefe Alex Atala, D.O.M.
Fala, minha gente. Tudo bem com vcs?
Bom, como falei na postagem anterior, hoje o post é escrito a partir da sugestão da minha querida (e assídua) aluna, Thays. Ela fez um comentário na postagem sobre o Cozinheiro Pensante, deem uma olhadinha lá. Assim, Thays, te dedico!
Em seu comentário, alguns eixos apareceram: diálogo entre alimentação e medicina, produção de orgânicos, contato com o produtor, uso de transgênicos e agrotóxicos. Se nós amarrarmos isso tudo, vemos uma realidade clara: a que passa a cozinha brasileira! São movimentos autênticos da cozinha brasileira? Não! Afetam diretamente a gastronomia brasileira? Sim! Vamos discutir como e porquê.
Primeiro, vale lembrarmos que, como reposta a um processo de industrialização intensificado ao longo dos séculos XIX-XX, a cozinha saiu de casa e foi para as indústrias; em fins do século XX e no decurso do XXI, a cozinha retoma seu espaço na casa das pessoas. A cozinha, inclusive, assume espaço de "estar" - à guisa da "sala de estar", inaugurando a "cozinha de estar" - nos lares contemporâneos. Mas precisamos enfatizar: essa cozinha que brilha nos lares de classe média são as cozinhas para diversão, não a cozinha cotidiana. Não podemos perder isso de vista.
Uma cozinha divertida não é um movimento isolado e deslocado: se a medicina e a cozinha começaram a traçar caminhos diferentes desde o século XV, no século XIX a medicina vai buscar entender as propriedades dos alimentos segundo os elementos que o constitui, segundo o historiador Felipe Fernandez-Armesto, em seu "Comida: uma história". Não podemos esquecer, porém, que isso foi na Europa. Aqui no Brasil, certamente, este movimento ganha força nos últimos 3 anos (talvez um pouco mais), com a Bela Gil - que, ao meu ver, é o expoente máximo contemporâneo da alimentação medicinal e filosófica.
Quanto ao consumo de orgânicos, os estudos sobre o uso de agrotóxicos e transgênicos - sobre seus efeitos negativos (ao solo, aos animais e ao homem), principalmente - também são recentes. Vamos ressaltar, ainda, que orgânicos são alimentos plantados sem uso de substâncias químicas laboratoriais, manipuladas visando uma melhor produtividade dos alimentos pela indústria, ou mesmo o uso de sementes geneticamente modificadas com o mesmo fim, o de produzir, produzir, produzir...... Logo, os alimentos orgânicos nada mais são que os produtos de uma agricultura que está à mercê da natureza (clima, solo, estações do ano, sazonalidade), dando melhores produtos em determinadas épocas, deixando de dá-los em outras. Logo, a alimentação orgânica exige uma adaptabilidade do homem à natureza, processo pelo qual o homem contemporâneo terá imensa, extrema dificuldade por passar.
Mas o que isso tudo tem a ver com a cozinha brasileira? Tudo! Estamos exatamente neste momento: valorização da cozinha (mas não a cotidiana, só a ligada à diversão), que se alimenta de modismos (e a cozinha dita "natural" figura como expoente deste processo), o que leva o consumidor a procurar a comida orgânica, o contato com o produtor... enfim, um compilado inzoneiro de movimentos de expressão europeus. (Quer conhecer mais como isso aconteceu na Europa? Clique aqui!).
Como isso tem acontecido entre os chefes de cozinha hoje? Bom, a exemplo do que se faz na Europa, os chefes têm buscado conhecer melhor o seu produtor, têm buscado trabalhar junto a ele no que tange à disponibilidade de produtos e à sazonalidade do plantio. Resultado disso aqui no Brasil: Alex Atala mandou vir formigas saúvas da Amazônia para São Paulo, fazendo o prato que é destaque desta postagem. E eu te pergunto: qual é a brasilidade que há no prato? Quem, brasileiro, consome saúvas por aí, como se isso representasse o nosso cotidiano, o nosso entendimento sobre a brasilidade inerente ao brasileiro contemporâneo? Mas o objetivo dele era, mais que colocar formigas sobre um prato, ajudar os índios que as produzem para o chefe. Intenção: ótima! Proposta: Ok. Questão: será que estamos fazendo isso certo?
O que eu quero pôr em xeque aqui é: há uma gastronomia essencialmente brasileira, a ponto de entendermos os produtores de orgânicos como aliados da alimentação contemporânea? É possível haver uma brasilidade no que se consome (seja por diversão ou na cozinha cotidiana) a partir de uma filosofia nossa, autêntica? É POSSÍVEL DESCOLONIZARMOS A COZINHA BRASILEIRA?
Sei que são questões densas e repletas de polêmica, mas que devem aparecer e que nos permitam refletir sobre o nosso papel na cadeia produtiva enquanto profissionais e/ou consumidores de alimentos. Detalhe: encontrei essa provocação em um livro bárbaro do Carlos Alberto Dória, leitura mais que recomendada!
E aí, vamos conversar?
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Pessoal, espero que vocês tenham gostado da postagem de hoje! Sei que há uma densidade muito grande a ser evidenciada acerca dessa temática, e que acabamos reduzindo algumas coisas, falando num análise feita a voo de pássaro e num aumento de lupa limitado. Mas vamos ampliar a discussão! Quero mesmo que você, cozinheiro, chefe, consumidor ou amante não profissional da cozinha, comente a postagem, expondo o que você pensa!
Na semana que vem nós vamos continuar o "Na panela tem...", agora com o livro do Dória, este que citei na postagem e coloquei o link ali! Gente, é uma obra-prima da alimentação brasileira! Escrita maravilhosa e questões contundentes! Fica a dica da leitura e a dica para a análise na próxima semana.
No mais, espero que estejam curtindo as postagens e as provocações que tem aparecido por aqui. E eu insisto: deixe nos comentários a sua impressão do nosso espaço! É um termômetro muito bacana para darmos rumo aos temos aqui do blog. Tá bom?
Bom, a gente se vê na semana que vem, então! Obrigado e Cruj Tchau de novo pra vocês (pra você em especial, Thays!).
2 comentários:
Finalmente consegui ler! Logo o texto especialmente dedicado a mim veio na semana mais conturbada do ano.
Bom, respondendo de cara ao seu questionamento, eu acho muito difícil, pra não dizer impossível, descolonizar a cozinha brasileira. Aquilo que foi imposto a nós está arraigado de tal forma que entendemos isso como nossa identidade. Além do mais, para além da colonização, é impossível voltar atrás no processo de globalização.
Dito isto, discordo de você quando diz que a aderência ao movimento slow food se dá somente na cozinha para divertir. Acredito que está crescendo a quantidade de pessoas que entendem que de fato a saúde vem do comer e buscam uma alimentação natural, limpa e inteligente. Alguns países inclusive já determinaram que todo alimento produzido em seu território deve ser orgânico.
Quando falo de slow food, estou pensando mais em Belas do que em Atalas, que fique claro! Saindo da alta gastronomia e indo pra mesa do dia a dia, talvez quem ilustra melhore esse ponto é uma geração jovem, que está desconstruindo vários conceitos tradicionais e dando outro jeito de lidar com os paradigmas.
Enfim. É um assunto infinito, como o professor disse, e exige um loooongo debate. Vou ficar por aqui pra não chegar atrasada na sua aula e ficar de fora da cozinha :)
Obrigada por dedicar seu tempo e conhecimento à minha pessoa, foco lisonjeada! Cruj, tchau!
Oi Thays! Que bom que gostou da homenagem! Rs.
Quanto à questão do Slow Food, precisamos amadurecer um pouco a ideia. O slow Food apareceu como um resgate de uma condição de outra, qual seja, a da alimentação fora das esferas dos processos industriais do século XIX. Por vezes, então, vejo que o movimento busca "retomar" algo, quando eu penso que a perspectiva atual deveria ser mais a de criar.
Problematizaremos isso em sala de aula para ampliar o debate. Valeu a observação.
Abraços.
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