terça-feira, 5 de abril de 2016

"Na panela tem...#3"

Fala, minha gente. Tudo bem com vocês?

Essa semana eu vim cumprir a minha promessa, passando pelos vários imbróglios gourmetizadores por aí. Rs.

A análise do "Gastronomia no Brasil e no Mundo", de Dolores Freixa e Guta Chaves, compõe o arsenal do "Na panela tem... #3". A edição e análise é a mais recente (a 3a.), publicada em 2015.

As autoras, Dolores e Guta são estudiosas da gastronomia de forma geral. A primeira, historiadora e professora do curso de turismo e gastronomia, e a segunda jornalista de formação, trabalhou na revista Gula, a referência do início dos anos 2000. Autoras entusiasmadas com a gastronomia e condições de viabilidade para se produzir um livro, vamos lá conferir a obra.

**********************************************************************************

(a imagem é ainda da primeira edição, de 2009. O atual vem escrito "3a. edição revisada e atualizada" do canto superior e esquerda)

Bom, preciso começar dizendo que o livro é lindo! Atual quanto às suas informações, provocativo quanto às reflexões, e uma importante base para se pensar a gastronomia no Brasil e no mundo!

Os "Petiscos da História", recurso fantástico utilizado pelas autoras, busca "colar" o conteúdo ampreendido àquilo que é parte do cotidiano. Assim, conseguimos transitar melhor entre as questões mais abstratas e, de certa forma, encontrar conforto quando deixamos aquilo mais palpável.

O Livro se divide em vários capítulos, logo, farei brevíssimos comentários sobre cada um deles!

Em "Uma cultura chamada gastronomia" traz à tona questões importantes! Além de convocar reflexões sobre o que é gastronomia, fala-se sobre cozinha e culinária, sua ligação à alimentação, a emergência dos restaurantes (e a noção de restauração), amarrando tudo à história da gastronomia.

No capítulo 2, "pré-história e história antiga", vai nos colocar quais horam as contribuições dos humanos doa primórdios, buscando evocar as formações sociais e sua relação à alimentação. Civilizações e "berços de saber gastronômico" são discussões que irão aparecer por aqui.

Em "europa medieval, árabes e bizantinos", leremos um pouco da transformação/complexificação social emergente neste momento, o que o cristianismo protagonizou junto a toda a formação social eupeia. Fala-se do clero, do tímido reaparecimento das cidades, o Le Vindier (livro de cozinha medieval), do império bizantino e das Árabes - de suas contribuições, na verdade. Tais contribuições, inclusive, ultrapassam ingredientes e chegam às formas como se servem os alimentos.

No trecho "renascença, a contribuição italiana" a autora corrobora com o que fazem a maioria dos autores: colocam sobre as costas de Catarina de Médicis a questão da emergência da corte francesa. Para quebrarmos um pouco essa perspectiva, sugiro que leiam esse debate aqui. Além disso, a reemergencia de uma cozinha regional e os laços entre a França Moderna e a Itália Renascentista são um marco do período.

No capítulo "expansão marítima e a américa", mais que a fala sobre especiarias, vale o processo de compreensão de ganhar o mundo. A troca de ingredientes e hábitos alimentares ocorrida entre regiões é o escopo da discussão. Um trabalho fantástico.

O capítulo 6 traz "a influência da gastronomia francesa", nos mostrando que, após o contato com a Itália, França se tornou o centro de referência dos bons modos à mesa, às festas, aos bailes.Os chefes dos reis passam a figurar como personagens importantes. As bebidas do novo mundo já fazem parte do cotidianos da aristocracia (chá, café e chocolate).

Em "a idade de ouro da gastronomia francesa" emergem os debates sobre os primeiros críticos gastronômicos, os chefes de ouro, a emergência da indústria hoteleira de luxo, além de refletir sobre a ciência à favor da alimentação e quais são eras expectativas para o século XX.

No capítulo "idade contemporânea", muitas da respostas são encontradas, nem sempre num sistema sustentável às demandas do século XX. Vale ressaltar a integração do mundo dos vinhos com o resto do mundo, além de um turismo cada vez mais voltado à contemplação do regional e que busca entender os movimentos migratórios intensos dos séculos XIX-XX.

No trecho "Brasil", o livro o divide em "heranças, colonial, império, século xx, cozinha típica regional", finalizando o processo em Globalização. Assim, vale ressaltarmos a disposição da autora de pôr o Brasil num papel tão importante quanto o da cozinha do mundo europeu.

**********************************************************************************
O livro é muito, muito maravilhoso. Erroneamente, ao avaliá-lo há 3 semana, dei 3 frigideirinhas no meu instagram. Errei! Este livro merece 4 frigideirinhas!

As 4 frigideirinhas não sã em vão: apesar do trabalho magnífico das autoras, elas assumem - num sem fim de vezes ao longo o texto - a gastronomia como sendo a "alta cozinha" (seja lá o que isso signifique, de fato". No capítulo que trata sobre cozinha na idade média, num dado momento elas evocam a "cozinha rudimentar do camponês" (p. 60), falando da não nobreza dos ingredientes que cresciam rentes ao chão, como legumes e leguminosas. Além disso, escritos de cozinha registram o que comem os nobres, não os camponeses.

Isso é um pouco inconsistente, a meu ver. Em grupos que vivem próximo, a alimentação não seria assim, tão diferente. As aves, ingredientes nobres do medievo, compunham cotidianamente a mesa dos aristocratas, junto a pães e outros pratos muito parecidos com os que eram feitos pelos camponeses. Assim, penso que a cozinha camponesa seja também escrita nos compêndios culinários da Idade Média; ao historiador, porém, cabe o estudo e as reflexões quanto a estes meandros.

Apesar desse pequeno posto (e alguns outros, mas que pouco interferem na aprendizagem), o livro é extremamente acessível em termos de linguagem e informação.

A amazon.com.br está com essa obra em promoção, vale a pena conferir!

Espero que vocês tenham gostado e eu os aguardo na próxima semana.

Atééééééééééé!

quarta-feira, 30 de março de 2016

Ainda tentando me livrar do raio gourmetizador....



Fala, minha gente. Tudo bem com vocês?

A postagem que eu prometi na última semana, o "Na cozinha tem... #3" sobre o "Gastronomia no Brasil e no Mundo" está pronta. Mas, confesso, tive que atrasar um dia. E, decidi, atrasarei uma semana. Saiba o porquê.

*********************************************************************************
Ontem, ao longo do meu período na UFES, nas trocas que faço com meus colegas de curso nos corredores, ouvi algo sobre "brigadeiro gourmet de verdade, o bom, é feito com chocolate belga!".                                                                      


(o nome disso é "pausa de mil compassos".)


Ontem, ao londo do meu período na UFES, nas trocas que faço com meus colegas de curso nos corredores, ouvi algo sobre "pão de queijo gourmet.... é! É feito com um queijo italiano lá, maravilhoso! 'Grano'-num-sei-o-que-lá.......


(o nome disse é E.Q.M.).


*********************************************************************************
Na última semana, coloquei no ar o "Na panela tem... #2", analisando o texto do maravilhoso sociólogo Carlos Alberto Dória. Falei sobre a "emergência de sabores regionais", e preciso reiterar, brigadeiro e pão de queijo se inscrevem nessa lógica! São sabores regionais, são sabores nossos. Buscar amparo na Bélgica, na Itália..... é assim que fazemos cozinha brasileira? Fico com a questão nas mãos...

Falei, há algumas semanas, sobre a necessidade de se descolonizar a cozinha. Como vamos conseguir isso, se um dos maiores ícones da culinária brasileira, o famoso chefe Alex Atala, escreve as "Escoffiana Brasileiras", à sombra de Escoffier de sua machista e sistemática cozinha francesa do século XIX? 

*********************************************************************************
Preciso ressaltar: não estou falando mal da Bélgica, da Itália, da França. Longe de mim!

Mas preciso formalizar que quero falar bem da cozinha brasileira! Aquela que tem no brigadeiro o leite condensado, o toddy (nescau), a margarina.... no pão de queijo feito com aquele queijo comprado na feira ou nas mercearias os seus pés fincados. O queijo que, de tão amarelo, faz com que o umami rasque a nossa língua. Que delícia! O brigadeiro que, de tão doce, nos convoque a, deliciosamente, sanar a sede com um copo d'água bem gelada!

Então, é isso. Para essa semana, reflexão sobre os rumos da cozinha brasileira, reforçando a discussão da semana anterior.

Tchau, tchau!

PS: deixo aqui embaixo o meu artigo sobre a gourmetização da alimentação, já publicado aqui no blog, republicado para contextualizar a questão.


quinta-feira, 24 de março de 2016

Torta capixaba: tão importante quanto o ovo de páscoa!



Fala, minha gente. Tudo bem com vocês?

Hoje é postagem especial!!!!!!!!!!!!!

Em época de páscoa, ao bom capixaba não pode faltar o tradicional ovo e nem a TRADICIONAL TORTA!!!!

E aí que eu poderia escrever várias coisas sobre a torta, mas eu quero compartilhar com vocês uma das melhores coisas da minha vida: ouvir a minha orientadora falar!!!

A profa. Dra. Patrícia Merlo (minha digníssima e maravilhosa orientadora) fez e faz muito pela gastronomia local! Além de levantar a bandeira das tradições culinárias que fazem parte de nossa formação, ela escreve muito bem sobre isso! (Vou colocar aqui o currículo dela para vocês conhecerem os títulos dos livros!).

Se deliciem com o vídeo!!! E feliz páscoa a todos os apreciadores da nossa torta!

PS: em meu snapchat (fernandobaixo) eu estou colocando algumas curiosidades sobre a torta capixaba, vale conferir!

PS2: o siri, elemento importante na produção da torta capixaba, ainda é trabalhado artesanalmente aqui no ES. Em 2010 eu fiz uma pesquisa sobre isso, pesquisa essa publicada pelo Governo de Estado do ES neste link! Acesse!.


terça-feira, 22 de março de 2016

Na panela tem...#2



Fala, minha gente. Tudo bem com vocês?

PRECISO ME DESCULPAR!!! SINTO MUITO POR NÃO TER POSTADO NA ÚLTIMA SEMANA!!!

Estou em vias de dar início às atividades de provas na faculdade em que dou aula / estou fazendo um mol (=6,02x1023, lembra?) de trabalhos para o meu curso de História! (Gente, ser professor e aluno é uma loucura!). Assim, peço um milhão de perdões, por favor. Não deixem de conferir o nosso blog, tá? Foi só uma exceção, prometo que não ocorrerá de novo!

Bom, como prometido, vamos à análise do livro lindo do sociólogo Carlos ALberto Dória?

******************************************************************************************************


DÓRIA, Carlos Alberto. Formação da Culinária Brasileira: escritos sobre a cozinha inzoneira. São Paulo: Três Estrelas, 2014.

Pessoal, este livro é simplesmente maravilhoso! Quem me acompanha no instagram (fernando_viana) viu que eu o engoli em poucos dias! Fiz questão de avaliá-lo com 5 frigideirinhas, porque o livre é bom demais da conta!

Antes de falarmos da obra, vamos ao autor. Carlos Alberto Dória é doutor em sociologia pela Unicamp (2007) e pós-doutor (2008-2011) pela mesma instituição. O currículo dele é lindo, mas maravilhoso mesmo é o arsenal de obras voltadas à alimentação. A escrita deste autor é simplesmente linda e provocativa! Eu o acompanho pelo blog E-Boca Livre - este que tem reflexões ótimas e que, em 2015, foram compiladas em formato de livro. Vale muito a pena! Se você quer saber um pouco sobre outros livros dele, também maravilhosos, clique aqui.

Vamos à obra!

"Formação da Culinária Brasileira" é, sem a menor sombra de dúvidas, um super serviço aos estudos sobre a alimentação brasileira. Num intenso diálogo com Gilberto Freyre e Luís da Câmara Cascudo (com algumas concordâncias e discordâncias, com algum diálogo mais intenso e com alguma tensão mais marcante com outro), Dória faz em sua obra um verdadeiro revisionismo daquilo que se cristalizou sobre a alimentação brasileira.

Em 279 páginas, a obra - de leitura fluida e extremamente prazerosa - é constantemente provocadora. Dividida em sete capítulos (além de apresentação e elementos finais do texto), o sociólogo trincha a cozinha mais elegante que os nobres dos séculos XVII-XVIII, certamente! 

O primeiro capítulo, "Formação da Culinária Brasileira", é o mais denso e intenso do livro. É neste capítulo que o autor reforça e quebra conceitos ao longo de todas as páginas. Ao meu ver, inclusive, é o que vale toda a obra. Apesar das últimas páginas se tratarem, ao meu ver, de uma projeção futurologista dos rumos da gastronomia brasileira, o resto é essencial para nos localizarmos em nosso consumo alimentar contemporâneo. É neste capítulo que ele conceituará cozinha inzoneira, elemento essencial para entendermos a sua perspectiva nessa obra.Segundo o autor, 

o adjetivo sugere o que é manhoso, enredador, além de enganador. Desse modo, pareceu-me apropriado para indicar o que fala ao paladar de maneira envolvente, esperta, porém cheia de aspectos claros e escuros. Algo nessa cozinha nos é absolutamente familiar, sensível, mas difícil de definir. É justamente em meio a essa dificuldade que faço meu caminho, tentando conduzir o leitor a uma compreensão melhor de nossa culinária, sem deixar de reconhecer, entretanto, as lacunas e enormes ciladas que há no percurso. (p. 12).

Linda essa fala, não é? Ao ler este capítulo, vamos permeando um pouco a noção de cozinha brasileira, essa que nos parece muito familiar, mas que é repleta de nuances desconhecidas a nós. Leiam tomando café e comendo biscoitos de avó! Isso fará diferença no proveito da leitura.

É neste capítulo, também, que vale a pena conhecermos um pouco de Casa-Grande e Senzala, de Gilberto Freyre, e História da Alimentação no Brasil, de Câmara Cascudo. Quem ainda não os conhece, entrem no Google acadêmico e busque resenhas dessas obras. Vale a pena!

No capítulo dois, "Entre secos e molhados", o autor convoca uma discussão fantástica sobre os alimentos secos e os molhados, e os que se inscrevem neste percurso - uma mistura de seco e molhado. Destaque à mandioca e ao milho, essenciais para entendermos um pouco da cozinha indígena tradicional brasileira e sua mistura às comidas caldosas portuguesas.

"A emergência dos sabores regionais" é uma verdadeira quebra de paradigmas, colocando em xeque as noções "senso-comum" que temos da alimentação brasileira. TODOS os professores de Gastronomia deveriam ler isso! É um soco em nosso estômago.

O trecho "Feijão como país, região e lar" trata do consumo do feijão ao longo de nossa história. É aqui, inclusive, que o autor dá o último golpe no mito (se é que ele ainda está de pé) de que a feijoada é um prato de origem africana - executado pelos escravizados africanos aqui no Brasil. Caso ainda reste alguma dúvida, acessem este artigo do prof. Dr. Henrique Carneiro e mate o mito da feijoada.

Em "Legitimidade e legibilidade à mesa", o autor põe uma discussão muito interessante: até quando o uso de produtos considerados típicos compõem uma cozinha considerada tradicional? Esses conceitos, inclusive, nos instrumentalizam para discussões como as da semana retrasada: que cozinha é essa que queremos quando convocamos um resgate à cozinha tradicional? Debate filosófico e estético, importante para ampliarmos os nossos debates sobre a cozinha feita nos brasis.

"O estilo feminino de cozinhar" convoca uma discussão acerca do feminino na cozinha. Perpassa a relação entre a cozinha caseira como fazer feminino e a cozinha profissional como masculino. Expondo a visão de Escoffier, questiona essas condições estáticas, convocando mulheres que são chefes, mas que ainda são minoria. (sugiro a leitura dessa entrevista com Roberta Sudbrack e dessa com várias chefes).

Por fim, "Propostas para uma renovação culinária brasileira" faz uma reflexão do que estamos, convoca-nos a pensar para onde queremos ir, nos questiona enquanto gastrônomos! Essencial para debates sobre cozinha, este trecho nos chama à realidade para pensarmos: o que queremos de nós mesmos enquanto cozinheiros? Vale demais a reflexão!


******************************************************************************************************

Pessoal, por hoje é isso!

Reforço o pedido de desculpas, prometo que colocarei todas as leituras em dia para que isso não volte a acontecer!

Na próxima semana nós continuaremos com o projeto o "Na panela tem...", com a análise de Gastronomia no Brasil e no Mundo. Quem me acompanha pelo Instagram viu que eu já tive algumas questões com o livro, mas falaremos mais a fundo na próxima semana!

Ah, quarta-feira, amanhã, 23/03, é meu aniversário! Podem deixar recadinhos de parabéns! rs.

Muito obrigado pelo carinho e atenção de vocês. Nos vemos na próxima semana!

Tchau tchau!!



terça-feira, 8 de março de 2016

Deus é brasileiro, a gastronomia é inzoneira...

Sobremesa: formiga saúva sobre fatia de abacaxi
Chefe Alex Atala, D.O.M.

Fala, minha gente. Tudo bem com vcs?

Bom, como falei na postagem anterior, hoje o post é escrito a partir da sugestão da minha querida (e assídua) aluna, Thays. Ela fez um comentário na postagem sobre o Cozinheiro Pensante, deem uma olhadinha lá. Assim, Thays, te dedico!

Em seu comentário, alguns eixos apareceram: diálogo entre alimentação e medicina, produção de orgânicos, contato com o produtor, uso de transgênicos e agrotóxicos. Se nós amarrarmos isso tudo, vemos uma realidade clara: a que passa a cozinha brasileira! São movimentos autênticos da cozinha brasileira? Não! Afetam diretamente a gastronomia brasileira? Sim! Vamos discutir como e porquê.

Primeiro, vale lembrarmos que, como reposta a um processo de industrialização intensificado ao longo dos séculos XIX-XX, a cozinha saiu de casa e foi para as indústrias; em fins do século XX e no decurso do XXI, a cozinha retoma seu espaço na casa das pessoas. A cozinha, inclusive, assume espaço de "estar" - à guisa da "sala de estar", inaugurando a "cozinha de estar" - nos lares contemporâneos. Mas precisamos enfatizar: essa cozinha que brilha nos lares de classe média são as cozinhas para diversão, não a cozinha cotidiana. Não podemos perder isso de vista.

Uma cozinha divertida não é um movimento isolado e deslocado: se a medicina e a cozinha começaram a traçar caminhos diferentes desde o século XV, no século XIX a medicina vai buscar entender as propriedades dos alimentos segundo os elementos que o constitui, segundo o historiador Felipe Fernandez-Armesto, em seu "Comida: uma história".  Não podemos esquecer, porém, que isso foi na Europa. Aqui no Brasil, certamente, este movimento ganha força nos últimos 3 anos (talvez um pouco mais), com a Bela Gil - que, ao meu ver, é o expoente máximo contemporâneo da alimentação medicinal e filosófica.

Quanto ao consumo de orgânicos, os estudos sobre o uso de agrotóxicos e transgênicos - sobre seus efeitos negativos (ao solo, aos animais e ao homem), principalmente - também são recentes. Vamos ressaltar, ainda, que orgânicos são alimentos plantados sem uso de substâncias químicas laboratoriais, manipuladas visando uma melhor produtividade dos alimentos pela indústria, ou mesmo o uso de sementes geneticamente modificadas com o mesmo fim, o de produzir, produzir, produzir...... Logo, os alimentos orgânicos nada mais são que os produtos de uma agricultura que está à mercê da natureza (clima, solo, estações do ano, sazonalidade), dando melhores produtos em determinadas épocas, deixando de dá-los em outras. Logo, a alimentação orgânica exige uma adaptabilidade do homem à natureza, processo pelo qual o homem contemporâneo terá imensa, extrema dificuldade por passar.

Mas o que isso tudo tem a ver com a cozinha brasileira? Tudo! Estamos exatamente neste momento: valorização da cozinha (mas não a cotidiana, só a ligada à diversão), que se alimenta de modismos (e a cozinha dita "natural" figura como expoente deste processo), o que leva o consumidor a procurar a comida orgânica, o contato com o produtor... enfim, um compilado inzoneiro de movimentos de expressão europeus. (Quer conhecer mais como isso aconteceu na Europa? Clique aqui!). 

Como isso tem acontecido entre os chefes de cozinha hoje? Bom, a exemplo do que se faz na Europa, os chefes têm buscado conhecer melhor o seu produtor, têm buscado trabalhar junto a ele no que tange à disponibilidade de produtos e à sazonalidade do plantio. Resultado disso aqui no Brasil: Alex Atala mandou vir formigas saúvas da Amazônia para São Paulo, fazendo o prato que é destaque desta postagem. E eu te pergunto: qual é a brasilidade que há no prato? Quem, brasileiro, consome saúvas por aí, como se isso representasse o nosso cotidiano, o nosso entendimento sobre a brasilidade inerente ao brasileiro contemporâneo? Mas o objetivo dele era, mais que colocar formigas sobre um prato, ajudar os índios que as produzem para o chefe. Intenção: ótima! Proposta: Ok. Questão: será que estamos fazendo isso certo?

O que eu quero pôr em xeque aqui é: há uma gastronomia essencialmente brasileira, a ponto de entendermos os produtores de orgânicos como aliados da alimentação contemporânea? É possível haver uma brasilidade no que se consome (seja por diversão ou na cozinha cotidiana) a partir de uma filosofia nossa, autêntica? É POSSÍVEL DESCOLONIZARMOS A COZINHA BRASILEIRA?

Sei que são questões densas e repletas de polêmica, mas que devem aparecer e que nos permitam refletir sobre o nosso papel na cadeia produtiva enquanto profissionais e/ou consumidores de alimentos. Detalhe: encontrei essa provocação em um livro bárbaro do Carlos Alberto Dória, leitura mais que recomendada! 

E aí, vamos conversar?

**************************************************************************

Pessoal, espero que vocês tenham gostado da postagem de hoje! Sei que há uma densidade muito grande a ser evidenciada acerca dessa temática, e que acabamos reduzindo algumas coisas, falando num análise feita a voo de pássaro e num aumento de lupa limitado. Mas vamos ampliar a discussão! Quero mesmo que você, cozinheiro, chefe, consumidor ou amante não profissional da cozinha, comente a postagem, expondo o que você pensa!

Na semana que vem nós vamos continuar o "Na panela tem...", agora com o livro do Dória, este que citei na postagem e coloquei o link ali! Gente, é uma obra-prima da alimentação brasileira! Escrita maravilhosa e questões contundentes! Fica a dica da leitura e a dica para a análise na próxima semana.

No mais, espero que estejam curtindo as postagens e as provocações que tem aparecido por aqui. E eu insisto: deixe nos comentários a sua impressão do nosso espaço! É um termômetro muito bacana para darmos rumo aos temos aqui do blog. Tá bom?

Bom, a gente se vê na semana que vem, então! Obrigado e Cruj Tchau de novo pra vocês (pra você em especial, Thays!).

terça-feira, 1 de março de 2016

Na panela tem... #1


Fala, minha gente! Tudo bem com vocês?

Pois é, estamos dando início nessa semana ao projeto "Na panela tem...". Este projeto consiste em analisarmos livros publicados e que tenham como mote a reflexão acerca das práticas alimentares. Certamente, não figurarão apenas livros de cozinha ou história da alimentação, travaremos um diálogo bem amplo, de modo a pôr a cozinha em xeque a partir de vários vieses. 

Para a primeira postagem, "Comida como Cultura" foi um mega presente. Relê-lo e observar coisas que haviam passado nas leituras anteriores foi mesmo uma delícia. Dividi com os alunos do 3o período um dos textos deste livro, resolvi aproveitar e ler tudo. Foi ótimo! Vamos à análise!

**********************************************************************
MONTANARI, Massimo. Comida como Cultura. Tradução de Letícia Martins de Andrade. São Paulo: Senac, 2008, 207 pp. (A tradutora escreveu uma resenha da obra que vale a leitura!)

Com apresentação à edição brasileira do maravilhoso professor Henrique Carneiro, o escrito de Massimo Montanari se torna um presente ainda mais especial para nós, os leitores brasileiros.

O autor Massimo Montanari é historiador medievalista e professor da Universidade de Bolonha, na Itália. Suas pesquisas giram em torno da produção agrícola ao longo da Idade Média e, assim, foca seus trabalhos na alimentação camponesa, especificamente.

Como o título do livro já apresenta, a perspectiva de Montanari é trabalhar as relações entre a alimentação (e não a cozinha, o que é importante) e a percepção do que é cultura. Para atingir seu objetivo, é perceptível a inspiração nos trabalhos do antropólogo Claude Levi-Strauss (1908-2009), com quem pactua da noção maior que permeia o trabalho: a linguagem e a cozinha são os primeiros produtos culturais de um grupo social. Fantástico, não é?

Na primeira parte, intitulada "Fabricar a própria comida", o autor fala principalmente da relação entre natureza e cultura. Não caindo nos determinismos biológicos e geográficos de manifestação cultural, Massimo Montanari busca nos apresentar quais são as relação entre a natureza e a formação cultural - com destaques, claro, à alimentação (mais que isso, à produção da comida). Além de refletir sobre o que a natureza disponibiliza ao homem, o autor fala das tentativas do homem de dominar a natureza e os ciclos naturais, de modo a ter os mesmos alimentos ao longo do ano todo, ao mesmo tempo em que aprende a conviver com os vários período aos quais está sujeito - períodos de sazonalidade.

A segunda parte, "A invenção da cozinha", trata dos modos de fabricar a comida e a noção de civilização. O personagem principal deste trecho é, sem dúvidas, o fogo, e como seu domínio foi essencial para que, segundo o autor, o homem se diferenciasse das "bestas". Além do fogo, a cozinha oral e a cozinha escrita também são discutidas por ali, evocando as relações entre prazer e saúde na alimentação ao longo da história. Essa parte, em especial, É A MAIS LINDA DO LIVRO TODO! Todo mundo deveria ler esse trecho, é emocionante.

Já a terceira parte, evocada como "O prazer (e o dever) da escolha", trata dos hábitos alimentares e das escolhas (?) quanto ao consumo da comida. O brilhoso Brillat-Savarin (1755-1826) é o sopro de inspiração para este trecho. Quem já leu o Fisiologia do Gosto (livro que analisaremos mais à frente) ficará encantado com esse trecho. Em suma: o gosto é um produto social! E aqui estão algumas provocações muito importantes para compreendermos isso.

A última parte, "Comida, linguagem e identidade" é, certamente o trecho mais antropológico da obra. Chegando a comparar a comida à gramática, Massimo Montanari nos expõe hábitos/atos totalmente mecânicos de nosso cotidiano, jogando na nossa cara como a alimentação é, apesar de mecânica, um acervo de fazeres lindamente instituídos em nossas vidas.

Não bastando o livro ser fantástico, ao invés de uma parte com referências bibliográficas, trás um "GUIA À LEITURA", onde divide os assuntos por interesses, estes homônimos às partes de seu livro. Não é uma ideia fantástica? Vários destes livros eu adquirirei em breve!

**********************************************************************
Análise

A obra é maravilhosa! A escrita de Massimo Montanari é rápida e fluida, ao mesmo tempo em que a beleza de sua prosa nos trás conceitos densos e importantes. Vale reforçarmos que a sua obra é de grande importância, já que "Comida como Cultura" é mais um livro da carreira de Montanari, que tem o célebre "História da Alimentação" (1993) em seu extenso currículo.

Vale ressaltarmos que a obra exige alguma instrumentalização com alguns conceitos, já que fala sobre Idades Antiga, Média, Moderna e Contemporânea de forma muito ligeira. Seus conceitos vão e voltam, e por vezes são expressos pelos próprios consumos alimentares. Se parecer difícil num primeiro momento, não desista: a fluidez aparece mais rápido que imaginamos.

Algumas jogadas com as palavras (o texto original é em italiano) acabaram não dando muito certo na obra traduzida, o que exigiu um bocado de notas da tradutora, mas nada que comprometesse o conteúdo. Mais que isso: a tradutora soube escolher o que deixar no estrangeiro (já que o autor utiliza trocadilhos em italiano, latim e francês), e foi bem gentil em nos deixar a par das intenções do autor.

Apesar da tradução maravilhosa, a profa. Letícia Martins de Andrade acabou deixando passar alguns probleminhas de anacronia. Isso acontece, por exemplo, quando o autor se refere a um bolinho de feijão (???????) na Idade Média européia, apesar do feijão ser americano e só ter ido ao Velho Mundo durante a Modernidade (séc. XV-XVIII, aproximadamente). Poucas coisas, porém, passaram à criteriosa vista da tradutora, que é historiadora da arte, e não da alimentação.

Devemos enfatizar, ainda, o trabalho da Editora Senac São Paulo. Nos presentear com essa obra é permitir que o universo de estudo da História da Alimentação no Brasil se ressignifique, haja vista a importância da obra o do autor.

**********************************************************************

E aí, gostaram? Espero que sim!

Na próxima semana nós escreveremos sobre a sugestão da queria Thays, minha aluna do 3o período, que propôs uma discussão sobre alimentação e estética corporal. Já estou aquecendo as teclas do computador!!!

Não deixem de comentar esta postagem! Estou louco pra saber o que você achou desse novo projeto!

Então nos vemos na próxima semana! Tchau, gente!!!!

terça-feira, 23 de fevereiro de 2016

Livros de cozinha: expressão da realidade alimentar?

Fala, minha gente! Tudo bem com vocês?

Bom, na última semana nós falávamos sobre o foi a cozinha ao longo da história, falávamos sobre a relação entre alimentação e medicina, além de tentarmos aferir o momento em que essa relação ocupa instâncias mais autônomas e menos dependentes. Lembram?

Pois é. Como promessa é dívida, continuaremos a falar sobre essa relação, agora, a partir dos livros. 

Já falamos sobre o primeiro livro de cozinha a ser publicado, já falamos sobre o autor, os processos de autonomia que seguiram... enfim, falamos um bocado sobre essa história toda. Mas falamos pouco sobre os livros em si; nosso tema, então, vai se localizar em analisar os escritos em si.

No post anterior, falei sobre os primeiros escritos que tinham a cozinha em seu escopo (Edipateia e De Re Coquinaria). Vimos que a alimentação era ali expressa como citações do que eram boas iguarias e quais lugares produziam melhor determinados produtos. Lembram-se?

Pois bem, a coisa foi assim por muito tempo. Há escritos da Antiguidade e da Idade Média que trazem a alimentação em seu escopo também - normalmente, para não esquecermos, alidada a dicas de bem-estar. A alimentação como destaque, porém, começa a ganhar espaço na Itália do Renascimento.

Considerações importantes:
I. A Itália só se unifica no século XIX. Por isso, falar da Itália do Renascimento é falar de um conglomerado de territórios que formam a bota (forma da Itália no mapa), repleto de costumes/culturas peculiares;
II. Nesse período, os territórios italianos detinham o destaque máximo para a Europa. Assim, buscar referências de vida elegante por ali era buscar viver à italiana.
III. Livros - sejam quais forem - ao longo da história eram voltado SOMENTE às classes abastadas, que eram as letradas. Não falam, portanto, na esmagadora maioria das vezes, do que se alimentavam os estamentos populares. Apesar disso, muitos dos livros falavam de pratos que eram conhecidos pelo povo, mas associavam esses alimentos a outros, de consumo de nobres, como as aves, seres abençoados por estarem perto do céu (e, portanto, de Deus), que serviam de comida somente à aristocracia e ao clero. 
IV. Importante lembrarmos que os livros tinham por objetivo, durante grande parte da história, exportar hábitos alimentares distintos, voltados à aristocracia. Até o século XIX, não havia a preocupação em NACIONALIZAR a cozinha (e nada, já que não havia nação antes desse período). 

Comer o que se comia, como se comia e quando se comia, inspirados nos italianos, fazia dos demais europeus verdadeiros admiradores dos costumes ítalos. Os padrões de vida - estéticos, em especial - eram os inspirados no que emanava dali.

Os livros que tratam dos "bons modos" ou "bons costumes" traziam em seu escopo conteúdo sobre maneiras de se comportar, formas de educar as crianças e, como não poderia faltar, conteúdo ligado À alimentação. Mais que receitas, esses livros discutiam o que deveria ter em uma refeição, quais eram os dotes relacionados à alimentação (como o ato de trinchar de modo elegante as várias carnes) e o que deveria haver nas mesas mais abastadas, de modo a desprezar as de menor $uporte financeira - se é que vocês me entendem.

Os livros que falam de alimentação durante o Renascimento não falam sobre quantidades de ingredientes a serem utilizados nas receitas.

Segundo o historiador Ariovaldo Franco, em seu De Caçados a Gourmet, a ida de Catarina de Médici à França foi um dos elementos mais importantes para o deslocamento do eixo de centro de exportação cultural europeu. A partir do século XVII, França se torna o foco de atenção dos europeus para buscar referências de distinção e elegância.

Com La Varenne e a emergência do cozinheiro pensante, os livros eram então escritos por cozinheiros e para cozinheiros. Assim, não havia citações de quantidades exatas em nenhuma receita. Quando muito, os autores da Modernidade falavam de unidades pouco conhecidas hoje - em livros portugueses, "arrátel" é uma unidade extremamente utilizada, as demais pouco ou nada aparecem. Logo, cozinheiros letrados e já iniciados na arte da cozinha eram o público consumidor dos livros de cozinha até o século XIX.

Os dois primeiros livros de cozinha brasileiro são publicados no século XIX. O Cozinheiro Imperial (1839) e o Cozinheiro Nacional (1874?) buscavam nacionalizar as práticas alimentares, apesar de serem ainda muito inspirados nos livros de cozinha portugueses (Arte de Cozinha [1680] e o Cozinheiro Moderno [1780]). A segunda obra brasileira já trazia o vatapá e o caruru em suas preparações, apesar das imprecisões das receitas, o que reforça o público para quem eram escritos os livros.

Pessoal, não devemos esquecer uma coisa importante: os livros de cozinha são escritos para os HOMENS Sim, para os homens. Não haviam mulheres mestres de cozinha antes do século XX. O primeiro livro de cozinha que trás a mulher como um público alvo potencial consumidor é o Cozinheiro dos Cozinheiros, apesar de ser uma obra escrita por homens. Auguste Escofier fala da inutilidade da mulher para a cozinha industrial em suas obras. Bizarro, não é? Pois é, mulheres só escreverão livros de cozinha no século XX.

É na década de 1940 que se inaugura no Brasil as publicações Dona Benta. Voltadas ao público feminino, trazia receitas e dicas de comportamento para as mulheres donas de casa. Isso mesmo! Nas primeiras edições, inclusive, trazia gravuras que evidenciavam a importância da mulher cozinheira para segurar o marido em casa! Vás gravuras estão nessa edição aqui!

É a partir da década de 1950 que os livros trarão, mais que gravuras dos pratos, fotografias. Surgem, também neste período, os livros com quantidades precisas de ingredientes, o que tornou a cozinha muito mais fácil.

***************************************************************************
E aí, gostaram? Espero que sim!

Apesar do pessoal curtir as publicações aqui em nosso blog - e eu ver que há dias que há mais de 20 visitas por aqui - eu só recebi um comentário até agora (obrigado, Thays, minha aluna querida). Os comentários são um importante termômetro para a gente escolher o caminho a ser seguido. Peço a gentileza de vocês que deixem suas impressões e sugestões nos comentários, ok?

As obras que inspiraram a publicação de hoje são Comida como Cultura e A Mesa Posta, ambas italianas e publicadas aqui pela editora Senac. Acessem a resenha da primeira obra aqui, escrita pela tradutora do texto original (de Massimo Montanari).

Espero que tenham gostado e até a semana que vem! Tchau!